Grimório dedicado
O livro real que compila encantamentos, artefatos e elementos místicos usados pelo Doutor Estranho nas HQs
No rol de personagens da Marvel, nenhum foi mais popular entre a esotérica fauna alternativa dos anos 1960 e 1970 do que o Doutor Estranho. Em meio a hippies vidrados na vindoura Era de Aquário, universitários e membros de comunidades alternativas, os conceitos promovidos nas HQs do mago era o que havia de mais fascinante nos quadrinhos. O apelo das histórias era tão forte que motivou a aspirante a escritora Catherine Yronwode a trazer tais conceitos para o mundo real na forma de um códice de magia.
Em seu futuro, nos anos 1980, Yronwode se tornaria uma editora de quadrinhos e estaria envolvida com projetos como The Rocketeer (de Dave Stevens), Miracleman (de Alan Moore) e várias outras HQs, e se tornaria uma autoridade em ocultismo e feitiçaria. Antes disso, em 1977, sua situação era bem diferente. Recém-saída de uma comuna anarquista em que vivera por anos, Yronwode tinha 30 anos na época, estava desempregada, sobrevivia com ajuda da previdência social e morava em uma casa perto das montanhas, distante de qualquer cidade, onde seu maior contato com o mundo era por meio de fanzines e revistas em quadrinhos que recebia pelo correio, como as HQs do Doutor Estranho, suas favoritas.
Os conceitos mostrados nas aventuras do Mago Supremo – os quais ela já conhecia desde a década anterior, quando as histórias eram escritas pelo criador do personagem, Steve Ditko – tinham muito em comum com áreas com as quais Yronwode era bastante íntima, como cosmogonia, esoterismo e ocultismo. Foi quando ela teve a ideia de transpor aqueles conceitos dos gibis para a vida real, e começou a compilar todos os artefatos, encantamentos e rituais dos quais Stephen Strange lançava mão nas histórias.
Inspirada em dois livros da vida real, A Chave de Samolão e A Chave Menor de Salomão (uma coletânea de feitiços hebraicos de autoria atribuída ao rei Salomão e um compêndio com descrição de seres abissais e celestiais, respecitvamente), Yronwode nomeou seu projeto de O Livro Menor do Vishanti (The Lesser Book of Vishanti), inspirada no grimório usado por Stephen Strange nos gibis: O Livro do Vishanti.
Nos quadrinhos, o tomo consultado com frequência pelo Mago Supremo é único e contém todo o conhecimento de ocultismo do universo. Na vida real, o manuscrito criado pela autora é bem mais modesto, mas não deixa de ser impressionante. Em um dos capítulos, por exemplo, ela relaciona e detalha todos os artefatos usados pelo Doutor Estranho, em textos lastreados pelos quadrinhos.
O trabalho conta ainda com o conhecimento da autora sobre ocultimo e esoterismo. Um exemplo é mostrado em sua descrição sobre o Olho de Agamotto, o mais poderoso artefato usado pelo Doutor Estranho. “Steve Ditko, aparentemente, criou o visual do Olho de Agamotto a partir de um amuleto comum encontrado em regiões budistas do norte da Índia, o Olho de Buda. Trata-se de um pingente usado como colar e que serve de encanto para afastar mau olhado e proteger o usuário do azar”. De acordo com O Livro Menor do Vishanti, o fictício Olho de Agamotto e o real Olho de Buda compartilham até mesmo uma aparência similar.
Em outro capítulo, Yronwode transcreve as palavras de cada feitiço proferido pelo bom doutor e detalha qual a função de cada um. Por fim, em um extenso exercício de cosmogonia, ela faz uma relação das várias entidades cósmicas já encontradas pelo mago, bem como das regiões extraplanares que habitam.
A primeira versão de O Livro Menor do Vishanti saiu nas edições do fanzine Return to Reality (Retorno a Realidade, em tradução livre) em 1978. No ano seguinte, foi publicado na forma de livro com apenas 177 cópias impressas, mas com toda a pompa. “Foi impresso em tinta roxa em papel velino creme e encadernado em couro sintético lavanda com o Olho de Agamotto impresso na capa”, lembrou a autora.
Segundo ela, o códice de magia e religião tornou-se conhecido por fãs de quadrinhos da época e, para sua alegria, acabou consultado até mesmo por autores das futuras histórias do Doutor Estranho. “Ainda mais gratificante foi o fato de que as especulações fictícias que fiz sobre o Vishanti serem inseridas como histórias ‘canônicas’”, comentou Yronwode, que apontou um bom exemplo ao lembrar que foi ideia sua o fato de o Vishanti ser a união de três entidades. “Minha sugestão de que o Vishanti era, na verdade, Agamotto, Hoggoth e Oshtur, publicada em 1979, foi usada como parte da mitologia da Marvel nos anos 1980 pelo roteirista Peter Gillis”.
Vale lembrar que O Livro Menor de Vishanti engloba uma parte limitada da trajetória do Doutor Estranho, abarcando desde suas primeiras histórias, publicadas em 1963, no título Strange Tales, até pouco mais da metade da série do herói, Doctor Strange (mais especificamente a edição 44), de dezembro de 1980. Trata-se de um período de quase 20 anos em que foi estabelecida toda a base do personagem. O códice criado por Catherine Yronwode está disponível na íntegra no site da autora.
Capa da versão de The Lesser Book of Vishanti publicada em 1979
Essa foi a edição 99 da newsletter SOC TUM POW, e com ela trago a capa de mesmo número de alguma série em quadrinhos. A escolhida é a capa Usagi Yojimbo 99 (Dark Horse, 2006), uma das mais inspiradas dessa série maravilhosa. A ilustração é de Stan Sakai, autor do coelho samurai Myamoto Usagi, que aparece na imagem por seu reflexo na água. A decisão de Sakai de apresentar uma cena de batalha refletida na água bem como inserir o logo do gibi de maneira orgânica na arte é de uma inventividade digna de Will Eisner e que garante a ele o posto de um dos maiores artistas do mercado de quadrinhos atual. As cores, outro espetáculo, são de Tom Luth, o principal colorista de Usagi Yojimbo.
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Na última semana, o papo por lá foi Superman na Legião dos Super-Heróis, propagandas em gibis antigos, Do a Powerbomb (HQ da Devir que tive a felicidade de editar), lançamentos da Panini e a atual fase da Mulher-Maravilha escrita por Tom King. Além disso, um tema que tem rendido muito papo no grupo é a releitura de X-Men 2099 (Ed. Abril), série que eu e o amigo e assinante Ulisses Romão nos empolgamos em resgatar após o recente lançamento nos Estados Unidos de uma edição omnibus da equipe.
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