O medo de estar vivo
Chega hoje ao Brasil A Estrada, uma angustiante graphic novel pós-apocalíptica baseada em um grande nome da literatura
Pode parecer fácil causar medo em alguém, mas não é. Esse sentimento peculiar de angústia só se instala ante a promessa de um perigo palpável e, por assim dizer, real, de modo que não é a imagem de vampiros, zumbis ou aparições que levarão o leitor de uma HQ a vivenciar o pavor. Por outro lado, um cenário de falta de recursos, tomado pela desolação e pela desesperança e em que o outro é uma ameaça constante, esse sim é capaz de conduzir a mais profunda angústia. Para mim, esse medo e desconforto se fizeram presentes ao longo de toda a leitura de A Estrada, a graphic novel que chega ao Brasil pela Pipoca & Nanquim hoje, em 23 de abril, em lançamento simultâneo com a França, o mercado de origem da HQ.
O clima pesado está já na essência desse trabalho do francês Manu Larcenet (de O Combate Cotidiano), pois trata-se de uma adaptação para os quadrinhos do romance de 2006 A Estrada, escrito por Cormac McCarthy. Não posso dizer que sou um conhecedor da obra de McCarthy, mas sei que o romancista estadunidense é conhecido por sua narrativa pessimista, densa e pesada, que tem ambientes dos mais hostis como cenário, inclusive o mundo pós-apocalíptico de A Estrada – e se você acha que não conhece a violência do trabalho de McCarthy, puxe um pouco pela memória, pois talvez tenha assistido ao brutal Onde os fracos não tem vez (2007), longa-metragem adaptado de seu livro Onde os velhos não tem vez (2005) e vencedor do Oscar de melhor filme em 2008.
Por não ser versado na obra de McCarthy e muito menos por não ter lido o romance, não posso analisar a nova publicação da Pipoca & Nanquim enquanto adaptação literária, mas sou capaz de fazê-lo como uma HQ. E como narrativa gráfica Larcenet conta com um êxito que, quero crer, seja semelhante ao experimentado por McCarthy com seu livro original. Em uma narrativa contemplativa, na qual tudo o que há para se contemplar é um mundo habitado pela morte e coberto por cinzas, o quadrinista francês traz a história de um pai e seu filho percorrendo uma estrada e tentando sobreviver dia após dia enquanto migram de nada para lugar nenhum empurrando um carrinho repleto de tralhas essenciais a sua sobre sobrevivência.
A economia de textos é percebida tanto na ausência de um narrador que traga qualquer pista sobre o cenário quanto na conversa entre os dois personagens, limitada ao essencial, apenas ao necessário para que eles passem despercebidos por outros desesperados e para que guardem sua energia para sobreviver a mais um dia. Em compensação, a arte de Larcenet não poupa os corações mais sensíveis e escancara restos de pessoas que sucumbiram à fome, à doença ou pior, que foram devoradas por outros homens e mulheres que também buscam sobreviver. São páginas e páginas de cinzas e carcaças de pessoas que compõem o caminho de um pai e seu filho em meio ao que já foi o mundo que conhecemos.
Usar a figura de uma estrada como analogia para a vida já não é novidade, mas a metáfora sempre funciona, e nessa HQ funciona muito bem. Tão bem a ponto de gerar medo e angústia no leitor, que pode se ver torcendo pela sobrevivência daquela débil família a cada virar de página. Sem prometer mais que a mesma incerteza que a vida promete a cada um de nós todos os dias, A Estrada é uma HQ que fascina tanto pela arte quanto pela narrativa, mas que também desperta mais antigo terror da alma humana: o terror de estar vivo.
Essa foi a edição 89 da newsletter SOC TUM POW, e com ela trago a capa de mesmo número de alguma série em quadrinhos. No clima do terror, escolhi a capa de Eerie 89 (1978) com uma ilustração de autoria de Malcolm McNeill.
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