Diferença sutil
O pequeno elemento nas capas dos antigos gibis da Marvel que foi criado para lidar com a desonestidade de lojistas
Um dos meus primeiros gibis em inglês foi do Aranha, The Amazing Spider-Man 361, o qual comprei em uma viagem do colégio a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 1992. Sobraram motivos para a empolgação desmesurada que tomou minha jovem versão de 13 anos: revista importada (raridade naqueles tempos), formato maior (em comparação aos formatinhos da Abril), vilão novo e assustador (Carnificina) e arte de Mark Bagley (um dos meus artistas preferidos). Em meio a esses atrativos quase passou despercebido um elemento discreto, um retângulo branco em um dos cantos da capa preenchido por um selo comemorativo dos 30 anos do herói. Apenas hoje, décadas depois, começo a entender a importância daquele detalhe.
Na época, achei que o selo era apenas uma brincadeira da Marvel, evidenciando o cuidado no acabamento de suas revistas e servindo de gracejo aos leitores devido ao aniversário do principal personagem da editora. Mas a real função daquele elemento, na verdade, é menos editorial e mais burocrática. E mais, outras versões dele estiveram em circulação desde 1980, quando o selo foi criado como forma de organizar o processo de distribuição dos gibis da Marvel entre os que iriam para as bancas e os que iriam para as lojas de quadrinhos.
Essa divisão entre os pontos de venda é ainda mais antiga e surgiu com a criação do Mercado Direto, em 1973. Até então, os gibis eram comercializados em bancas (e em outros pontos de vendas como padarias, farmácias, supermercados, etc.) em caráter de consignação. Isso quer dizer que a banca pagava apenas pelas edições vendidas ao público, e o valor dos exemplares não vendidos era devolvido. Com o surgimento do Mercado Direto no início dos anos 1970, a Marvel passou a ter suas revistas distribuídas também em lojas especializadas em quadrinhos, que as compravam com um bom desconto mas não em consignação. Isso significa que, ao contrário das bancas, as lojas precisavam amargar com o encalhe.
Acontece que um ponto cego na logística da Marvel a impedia de diferenciar quais edições eram distribuídas nas bancas e quais iam para as lojas, o que abriu espaço para alguns lojistas se aproveitarem da falha. A fim de amortizar seus prejuízos, eles encontraram meios de devolver gibis encalhados por meio do sistema de distribuição das bancas, levando-os a ser indevidamente ressarcidos.
Ao perceber o problema, a partir de junho de 1979 a Marvel passou a identificar os exemplares das lojas com um código de barras riscado nas capas, enquanto os gibis das bancas iam com o código de barras normal. A estratégia deu certo, mas a estética incomodou os lojistas e, em março de 1980, o código de barras tachado foi substituído por um selo com a cabeça do Homem-Aranha.
Esse elemento das capas foi mantido por 13 anos, mas passou por alterações. A primeira se deu quatro anos após sua estreia, em junho de 1984, quando o visual do Aranha foi atualizado com o uniforme negro que o herói usava nas HQs da época. Após mais quatro anos, em 1988, o selo passou a variar a cada mês e de acordo com a série em que era impresso, trazendo elementos de cada edição, como o vilão da história, o emblema de um herói, brincadeiras do artista e coisas assim.
Foi só em 1991 que aquela pequena caixa no canto das capas começou a ser usada para celebrar o aniversário dos personagens da Marvel, a começar pelos 50 anos do Capitão América. Em seguida, vieram o selo de 30 anos do Quarteto Fantástico, seguido por um celebrando as três décadas do Hulk, depois as do Aranha, os 30 anos dos X-Men e dos Vingadores – é dessa leva que veio aquela edição que encontrei na Bienal.
O selo chegou ao fim em junho de 1993, dando lugar no mês seguinte a um código de barras sem graça ladeado pelos dizeres “Direct Edition”. Nos tempos atuais, em que a Marvel já não distribui revistas em bancas há mais de dez anos e atua apenas via Mercado Direto, a diferenciação entre códigos deixou de ser necessária e obedece a outros objetivos.
Da mesma forma, os antigos selos customizados também ganharam novas funções e tem guiado colecionadores em suas buscas por edições raras, ajudando-os a decidir qual exemplar querem em seus acervos: os da banca ou os das lojas. Eu prefiro os do Mercado Direto, pois aquele selo do Aranha faz parte de minha trajetória não como colecionador, mas como adorador de quadrinhos.
Alguns dos selos estampados nas capas dos gibis distribuídos nas lojas de quadrinhos
Capa de The Amazing Spider-Man 193 (1979), a primeira edição a apresentar o código de barras riscado
O selo com a cabeça do Aranha passou a ser mostrado em todos os gibis da Marvel
A partir de 1984, o selo foi atualizado de acordo com o visual do Aranha na época
Selo de 30 anos do Hulk estampado em um gibi dos X-Men
Capa de The Amazing Spider-Man 361 (1992)
Essa foi a edição 97 da newsletter SOC TUM POW, e com ela trago a capa de mesmo número de alguma série em quadrinhos. Motivado por todo esse papo de detalhes das capas, escolhi a capa de Web of Spider-Man 97 (1992), mas não devido ao selo dos 30 anos do Aranha, e sim pela brincadeira do corner box (no canto superior esquerdo). Em geral, aquele Aranha balançando na teia fica dentro da caixa e sob o logo da Marvel, mas acho que a ilustração de Derek Yaniger para a capa obrigou o diagramador a alterar o corner box e recorrer a criativa solução de mostrar o Aranha balançando para fora da caixa. Gosto.
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Excelente texto, como sempre! 👏🏼👏🏼👏🏼
Ótimo texto, Gustavo. Estou curtindo muito essa leva de textos sobre o Aranha.
Notei um pequeno erro no texto do "SOC", que só reparei graças ao conhecimento que eu adquiri pelo texto que eu tinha acabado de ler (rs)! A capa de Web of Spider-Man 97 conta com o selo de 30 anos do personagem. No entanto, você colocou a data de 1970 para a edição. Fiquei confuso e fui confirmar: na verdade, a edição é de 1992! Abraço.