Às vezes eu tinha uma sensação de estranheza com algumas capas dos gibis de super-heróis da Abril, mais especificamente com aqueles lançados no início dos anos 1980, quando a editora ainda engatinhava na publicação da Marvel e da DC no Brasil. A maioria das capas funcionava bem, mas algumas tinha um não-sei-o-quê que me parecia fora de lugar. Foi só recentemente, ao folhear a atual coleção A Saga do Homem-Aranha (Panini), que se propõe a republicar histórias do Aranha já lançadas pela Abril, que entendi o que havia de errado: o odiado Estúdio de Capas da editora – não odiada por mim, que sequer o conheci, mas, ao que parece, por alguns funcionários da época.
“A Redação de Revistas Nacionais e Estrangeiras e depois [sua sucessora] a de Super-Heróis viviam às turras com esse estúdio”, explicou-me um dos pivôs da produção das HQs da Abril naquele início dos anos 1980, o então tradutor Jotapê Martins. “Eram eles que faziam as capas e quase nenhuma capa americana atendia aos seus critérios. Herói tinha que aparecer de frente em pose de herói. Lembre-se da capa de Batman 1”, completou rememorando o gibi de 1984 em cuja capa o Homem-Morcego se balança em uma corda em rota de colisão com o leitor com um baita sorriso no rosto.
Foi outro gibi que não o do Batman que me levou a levantar questões sobre as capas da Abril: Homem-Aranha 28, em que o herói se balança em um fio de teia entre os prédios enquanto avança contra (ou foge de) um monstro de lama gigantesco ao fundo. Eu só tive acesso a essa revista em minha adolescência nos anos 1990, cerca de dez anos após seu lançamento, em 1985, e aquele desenho me causou estranhamento. Enquanto o monstro gigante era repleto de sombras e volumes criados por traços grossos e firmes de tinta preta, a ilustração do Aranha era simples, boba, com poucos detalhes e apenas com o necessário em termos de acabamento. Pior ainda era o cenário, composto por prédios monótonos e nuvens que lembravam os de um desenho infantil. Até mesmo a perspectiva era esquisita, e claramente algo não se encaixava na cena.
Revi a imagem só recentemente ao ser publicada pela Panini como capa de A Saga do Homem-Aranha vol. 6 (2023), edição que resgatou o combate do herói contra o gigantesco monstro de lama. Algo havia mudado. Na verdade, muito havia mudado. A cena não era tão horrível quanto eu me lembrava, e isso se devia a um motivo: a nova publicação manteve a arte original da capa do gibi de onde saía aquela história, The Amazing Spider-Man 218, de autoria de Frank Miller. Ao comparar a revista da Panini e a da Abril, ficou evidente a mão pesada do antigo Estúdio de Capas ao adaptar as artes originais.
Comprovando as palavras de Jotapê, a capa original de Frank Miller trazia o Aranha totalmente de costas olhando estarrecido para o monstro ao fundo. Já na capa retocada da Abril, o herói foi mostrado quase de frente em uma perspectiva forçada. Como um leitor indignado queixei-me a Jotapê dizendo que a capa original funcionava muito bem por diversos motivos. “Quase quarenta anos depois, você está fazendo coro com a Redação de Revistas Nacionais e Estrangeiras quando ela reclamava em peso do Estúdio de Capas”, consolou-me.
Objetivos
As decisões do Estúdio de Capas atendiam à diretrizes que pareciam as mais adequadas aos objetivos da editora, mas é também devido às suas ações que as capas dos primeiros anos de publicação dos gibis Marvel/DC pela Abril tinham algo de estranho. “Eles não eram os vilões, e as pessoas que trabalhavam ali eram muito talentosas, mas o Estúdio de Capas tinha suas próprias regras, montadas ao longo de anos de produção de capas infantis”, rememora o editor Mario Barroso, que embora tenha entrado na Abril em 1989, após a extinção do departamento, é bom conhecedor dos meandros da editora. “O problema é que eles as reproduziram para os super-heróis achando que era o mesmo público, mas demoraram para perceber que não era”, completa. Jotapê reforça: “Era o vício em fazer capas para patos”, diz referindo-se à produção de revistas da Disney, o carro-chefe dos gibis da Abril por décadas.
Donizeti Amorim, o Doni, entrou como desenhista do estúdio em 1987 ajudando na produção de capas da Disney, e logo migrou para as HQs de super-heróis. Ao longo de sua longa trajetória como artista na Abril, conheceu bem as regras mencionadas por Barroso. “Eles preferiam o esquema de fundo livre destacando o personagem”, explicou.
Segundo Doni, os retoques eram necessários por diversos motivos, como excluir da ilustração personagens que ainda não tinham estreado nos gibis brasileiros ou criar espaço para textos nas capas. Vale lembrar que por serem publicados em formato bem menor em relação aos originais dos Estados Unidos, os gibis da Abril dispunham de menos espaço para texto em suas capas, muitas das quais precisavam anunciar também outras atrações da revista.
Para criar um fundo mais simples, os artistas recorriam a um processo conhecido nos corredores da redação como “chupar a arte”, que é basicamente colocar um papel transparente em cima do desenho original e traçar por cima. “Não tinha escâner na época, e às vezes não tínhamos os fotolitos originais da história, só a revista mesmo. Então, eu colocava uma folha de papel vegetal por cima dela e ia fazendo os traços com um pincel. Era bem trabalhoso”, lembrou Doni nostálgico de seus tempos da Abril.
Com o contorno do personagem transportado para o papel vegetal, era possível colocá-lo sobre qualquer fundo. Um bom exemplo é mostrado em Homem-Aranha 33, de 1986, edição produzida antes mesmo da entrada de Amorim na Abril. O gibi mostra o Aranha em diversas poses em um fundo amarelo ao redor de uma grande imagem da ladra Gata Negra, a vilã da trama. O que os leitores da época sequer imaginavam era que aquela imagem da Gata foi “chupada” de outro lugar e inserida na capa da Abril, criada a partir da capa The Amazing Spider-Man 225, em que as mesmas imagens do Aranha cercam o assassino Matador de Idiotas.
O vilão tinha estreado no Brasil na edição anterior (Homem-Aranha 32), mesmo gibi em que tivera início uma trama do Aranha com a Gata Negra. Ao decidir o que seria mais interessante aos olhos do leitor, é provável que o Estúdio de Capas, liderado por Izomar Camargo, tenha decidido dar destaque à Gata, que já era conhecida do público.
Enquanto alguns retoques favoreciam as vendas, outros resultavam em cenas desastrosas, como a de Homem-Aranha 6 (1983). A cena vem da capa de The Amazing Spider-Man 190, em que o Aranha enfrenta o Homem-Lobo enquanto a dupla despenca de uma ponte em direção a um rio. Na versão simplificada da Abril, a imagem traz apenas os dois se engalfinhando próximos a uma estrutura dificilmente reconhecível como uma ponte e sobre um fundo amarelo disforme. Já na edição 27 (1985), a cena da capa de The Amazing Spider-Man 217, em que o herói está cercado pelos vilões Homem-Areia e Homem-Hídrico, teve o Aranha apagado e redesenhado com ares bem mais simples, sem sombras ou volumes.
Simplificações como essas eram a regra, e elas atendiam também a algumas limitações técnicas do período. “Por conta do esquema da gráfica, era preciso anotar manualmente cada cor que entrava na capa”, lembrou Doni. “Eu fazia uma pintura em uma xerox da capa e ia anotando, por exemplo, M40 C30 Y20 K10 para um determinado tipo de marrom. Chegando na gráfica, eles repintavam seguindo essa numeração”, comentou mencionando as quantidades das cores magenta (m), ciano (c), amarelo (y) e preto (k) que deveriam ser aplicadas pela gráfica. “Imagina anotar trocentos personagens. Quanto menos melhor”.
Fim das atividades
Em seu tempo de atividade, o departamento produzia as capas de todos os gibis da Abril, o que englobava Luluzinha, Pantera Cor-de-Rosa, séries da Hanna Barbera, muitos gibis da Disney e, claro, as publicações de super-heróis. Com o tempo, os quadrinhos da editora ficaram limitados às revistas Disney e as da Marvel e da DC, as quais passaram a ser produzidas pela Redação de Super-Heróis, criada após o desmembramento da Redação de Revistas Nacionais e Estrangeiras em vários setores menores.
Com a redução, o Estúdio de Capas também foi extinto. “Era o Izomar como Diretor, o Moacir [Soares] como Chefe de Arte, quatro desenhistas [Doni, Ernesto Miyaura, Napoleão Figueiredo e Paulo Noely] e duas assistentes de arte [Coraly Kumagai e Silvia Barros]. Devia sair caro. Demitiram todos, só eu e o Napoleão escapamos. O Estúdio de Capas foi encerrado em setembro de 1988, época em que Doni foi realocado como desenhista da recém-criada Redação de Super-Heróis supervisionado pelo Chefe de Arte Paulo de Moura – Napoleão foi para a Redação Disney.
Novos tempos
A reestruturação dos departamentos afetou as capas dos gibis Marvel e DC, que começaram a ficar mais sofisticadas e a receber retoques menos incisivos. Passou a ser cada vez mais comum o uso das capas originais no lugar das montagens praticadas pelo extinto Estúdio de Capas. A qualidade saltou ainda mais com a chegada dos computadores à redação. “A imagem saia exatamente como eu fazia, então dava para aplicar uns efeitos que não eram possíveis antes. Aquela capa metalizada de Os Fabulosos X-Men 1 [1996], por exemplo, eu pintei no computador”, relatou Doni referindo-se a uma capa exclusiva da Abril ilustrada pelo brasileiro Roger Cruz, o astro das HQs dos X-Men da época. “Peguei o traço preto do Roger e mandei ver usando um Mac que tinha 250 megas de memória”.
Quando Doni fez a capa de Os Fabulosos X-Men, muito já tinha sido aprendido pelos responsáveis do setor de arte e as etapas do processo de produção foram aprimoradas graças aos sucessos e fracassos dos que vieram antes. Muito sobre o Estúdio de Capas, como detalhes de seus métodos, suas premissas e motivações merecem uma análise ainda mais aprofundada do que a apresentada nesse texto, que serve apenas como panorama geral dos bastidores de uma época tão importante do mercado brasileiro de quadrinhos.
Até então, vale olhar para as “gafes” cometidas pelo departamento mais como curiosidade do que como erros. Porém, para aqueles que conviveram com o estúdio naqueles tempos pode ser um pouco mais difícil dispensar a ele um olhar de candura. Perguntado se alguma capa daqueles tempos o marcou, Jotapê foi contundente: “Escolha uma capa horrível dos primeiros cinco anos da Marvel pela Abril e você terá um exemplo que tenha me marcado”.
Capa original de The Amazing Spider-Man 190 e sua reprodução pelo Estúdio de Capas em Homem-Aranha 6
Capa original de The Amazing Spider-Man 217 e sua reprodução em Homem-Aranha 27
Capa original de The Amazing Spider-Man 218 e sua reprodução em Homem-Aranha 28
A capa de The Amazing Spider-Man 225 com o Matador de Idiotas e a de Homem-Aranha 33 com a Gata Negra
Essa foi a edição 110 da newsletter SOC TUM POW, e com ela trago a capa de mesmo número de alguma série em quadrinhos. A escolhida é a de Captain America 110 (1969), edição em que tem início a fase de histórias do Capitão escritas e desenhadas por Jim Steranko, autor dessa capa. Gosto dela por vários motivos, em especial por mostrar a fuga alucinada do Bucky perseguido pelo Hulk, a qual me remete a mesma situação vivida pela Viúva-Negra no filme Os Vingadores. Ele parece correr em pânico em direção ao parceiro, como se soubesse que ao chegar no Capitão tudo ficará bem. O tamanho e a solidez do Hulk também me impressionam. Como curiosidade, vale mencionar que a capa marcou a estreia do novo logo da série, que seria reproduzido pelos 13 anos seguintes. O design do logo é creditado a Todd Klein.
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Nos últimas dias, o papo por lá foi sobre as HQs do Aquaman escrita por Peter David e aproveitamos para mencionar o desenhista daquela fase, Martin Egeland. Conversamos ainda sobre a arte de Jeff Purves em Hulk (adorada por uns e odiada por outros), os planos não concretizados de John Byrne para os X-Men, os lançamentos do período, novidades do canal Ministério dos Quadrinhos e mais.
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Genial a matéria, Gustavo! Apesar das decisões editoriais duvidosas, amo hoje ainda mais as capas mais coloridas e ingênuas da Bloch e da Abril - e pra falar a verdade a capa da Gata Negra ficou bem melhor que a original :) Qto a Steranko, o que falar, aquelas três edições estão dentre as mais influentes na arte do gênero em todos os tempos - lembro bem do encanto quase cinematográfico que senti ao ver a arte p&b dele reproduzida em matéria da Revista Vozes 4 de 1971 dedicada aos super-heróis. Um abraço !